sábado, 19 de dezembro de 2009

Espelho de água

Devaneios mentais, obscuros intrínsecos meus, perdoai minha infidelidade à douta ignorância que persisto indubitavelmente em fugir.
Um grito surdo-mudo arranha-me a garganta e teima em não sair. Dai alvissaras a quem o extrair!
Quem consegue libertar-me da minha própria mágoa? O Demo não me alivia a dor terrifica que assombra a luz do meu caminho.
Invado-me numa fuga grotesca que chega ao fim em menos de nada. Como é forte este grito, como é forte o poder do vazio.
A escuridão que me queima os olhos e me gela os pulmões, esmaga-me contra a minha própria barreira de protecção, onde ninguém pode entrar sem ser eu no mais profundo querer.
Apodera-te de mim luz maldita! Leva-me para pregar numa cruz!
Que grito tão aflitivo, este que teima em aniquilar-me!
Oh...que mesuras tamanhas, quando ainda sabia de mim, quando ainda sentia por mim, quando ainda me lembrava de mim.
Grito, porque não sais, porque não dissolves a escuridão de uma vez? Porque não me deixas ver?
Quero sair daqui! As lágrimas já não são húmidas, são pedaços do meu coração que esquartejas-te, que escorrem pelos ossos da cara, que já nem pele têm de tanto que me sugas-te.
Tentei mais uma vez agarrar-te e puxar-te para fora, mas as mãos escorregam. Pensava de ser transpiração, mas agora vejo que nada mais é se não o suor vermelho. É sangue!
Tenho sede. Os lábios secaram uma última vez. Não consigo descolá-los, estão presos, tu fechaste-los. Rastejei até à fonte. Dou puxões no meu corpo ao ritmo dos punhais que entram e saem...entram e saem...entram e saem...Ai, que dor tamanha...que sofrimento derradeiro! Porque não matas logo Satanás?
Consegui! Cheguei à fonte, mas não pude beber. Não queria ver mais o meu sofrimento no reflexo da água. Esse espelho podia matar-me, o quão fraco estava...
Porque não resolvi tudo quando pude? Porque não disse tudo quando pude? Porque não fiz tudo quando pude? Porque não vivi quando pude?
Agora é tarde, o inicio vai marcar o fim. O primeiro dia do Apocalipse chegou e com ele o cataclismo da minha existência!
Fujam...corram em quanto podem, resolvam o que puderem, digam o que puderem, façam o que puderem, vivam o mais que puderem! Não olhe para trás, fiquem indiferentes ao sofrimento do pobre mendigo de si próprio. Fujam...vão em quanto é tempo, corram já, que eu não suporto mais vê-los a desperdiçar o que eu desperdicei! Esta fonte já secou, nada mais pode ensinar. Agora são vocês que têm que lutar.
Sinto uma lufada quente pousada no ombro direito. Não consigo olhar, dói de mais...Tenho que resistir, mas a queimadura persiste em mim.
Vou reunir forças, vou olhar. O medo está a consumir-me, mas vou tentar.




Estou perplexo...ofegante...que bonito. Não posso mais conter, é hora. Só pode ser uma identidade superior, que vem por termo a este sofrimento! Bem dito sois vós Salvador! Ri-me e solucei lágrimas. É ele. Não posso mais negar...Estou cego da vida agora, não posso nada mais querer. Que prazer. A erudição daquela imagem consome-me, sinto-me vivo.
Os lábios estão a queimar, não sei o que é...a boca vai saltar, que agonia... e grito.
O grito surdo-mudo que me arranhava a garganta e a escuridão que me rodeava desmantelou-se. Caiu a meus pés.
Tudo é claro, simples, mágico...Quero olhar nos olhos do meu Salvador e beijar-lhe os santos pés...É agora.

SOU EU!
SOU EU O MEU SALVADOR!
A imagem que vejo sou eu reflectido na água da fonte. Sou eu o meu próprio grito que me prende e mata, sou eu o meu Demónio, sou eu o meu Salvador.
Sou eu prisioneiro de mim, jurado por mim.
Oh que fiz eu, afinal é cedo ainda! Ainda posso algo fazer, ainda não vou morrer...
Vou resolver tudo o que puder, vou dizer tudo o que puder, vou fazer tudo o que puder,

VOU VIVER TUDO, O QUE PUDER...


2 comentários:

  1. ui. que forte. que dramático.
    como uma pessoa do teatro só pode ser :D

    gosto da mensagem.
    concordo.
    cada um é o seu próprio demónio. e o seu próprio salvador.

    embora o teu estilo seja um pouco romântico e trágico demais... transmites bem. ai, parece um excerto do Hamlet :p

    vou seguir
    e comentar qnd puder :P

    beijinho

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  2. Olha que isto dava um excelente monologo...

    Já pensaste em pôr isto numa peça ou assim? Ficava giro, além disso tem uma veia Shakespeareana...

    Gostei! ;)

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